Estudo literário: Noites Brancas (1848), de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski

Estudo literário: Noites Brancas (1848), de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski

Estudo literário: Noites Brancas (1848), de F.M.Dostoiévski

Giuliano de Méroe

 

A história se inicia em uma singular noite estival de São Petersburgo, onde dois jovens se encontram numa ponte sobre o canal Nievá.Nessa estação do ano, o sol não se põe totalmente; em certos momentos ele permanece um pouco abaixo da linha do horizonte, o que mantém a cidade numa claridade penumbrosa, daí o título Noites Brancas.

A trama do escritor russo inspirou algumas versões cinematográficas, como a italiana “Le Notti Bianche” de Luchino Visconti (1957), com atuação de Maria Schell e Marcelo Mastroianni, e a francesa “Quatre Nuits d’um Rêveur”, de Robert Bresson (1971).

O estudo enfoca trechos intensos das falas entre os personagens, e tece comentários sobre a peculiaridade de Dostoiévski — romance polifônico — desvendada por Mikhail Bakhtin, um importante crítico literário.

O romance “ Noites Brancas”, marca a primeira fase de Dostoievski, concluída pouco antes do autor ser enviado para a prisão na Sibéria. Ele tinha 27 anos quando criou essa história; era momento de sua vida em que deixava capital russa Moscou para ir estudar em São Petersburgo.

Noites Brancas inspirou diretores de cinema como o francês Robert Bresson, que a adaptou, transpondo-a para o cenário parisiense. Em1971, Bresson  cria um longa-metragem  “Quatre Nuits d'un Rêveur, com atuação de Guillaume des Forêts e Isabelle Weingarten”. O italiano Luchino Visconti, em 1957, fez a adaptação “Le Notti Bianche”, com atuação de Marcello Mastroianni e Maria Schell. O destaque é a praça de Livorno, localizada na cidade de mesmo nome.

As histórias desse escritor sempre foram elaboradas em momentos de muita tensão e excitação existencial. Obras mais maduras como o Idiota, por exemplo, pertencem uma fase em que o Dostoievski era acometido repentinamente por crises epiléticas, quando vislumbrava algo que maculasse a complexidade de algum acontecimento, por exemplo, em uma obra de arte religiosa, quando a imagem de Cristo era forçosamente adaptada a alguma conveniência de interesse ou certa tendência.

A história se passa durante as noites de verão petersburguense. No posfácio, o tradutor Nivaldo dos Santos, mestre pela USP em Filosofia, e professor da língua Russa na Universidade Estadual de Campinas, explica que em um período daquela estação, o sol não se põe totalmente, e a cidade permanece em uma claridade penumbrosa, como a aparência sombria de um fantasma.

A trama do romance tem a limitação temporal de apenas quatro noites e uma manhã. Apenas um personagem, uma moça, (Nástienka) recebe um nome. O personagem e narrador, que se apaixona perdidamente, bem como o inquilino pelo qual ela se apaixona, não são nomeados.

O jovem em suas andanças, perambulando à noite pelas ruas da cidade, aprecia imensamente a paisagem, dialoga com as casas, com a famosa Avenida Niévski [1], as ilhas Kamiênny[2].., e numa ponte sobre o rio Nievá, avista uma jovem debruçada no parapeito...uma curiosidade enorme se apodera do rapaz para se aproximar e ele se vê compelido a fazê-lo por uma estranha força que o impulsionava em direção a ela.

Quando trocam algumas palavras, ambos se sentem embaraçados e o diálogo rapidamente entra em uma tonalidade muito intensa:

 —Será que temos que prestar contas de todo um sentimento, mesmo de uma fraterna amizade? diz Nástienka ao jovem.

— Talvez a senhorita tenha me reconciliado comigo mesmo, tenha dissipado as minhas dúvidas... talvez esses momentos me prendam...

Nota-se, nessa curta troca de frases, o traço que Bakhtin com esmerado esforço desvenda em Dostoiévski, a polifonia, ou seja, as vozes dos personagens são independentes, desprendidas de causalidades espaço-temporais (sequência lógica e linear do tempo: o antes, hoje e depois). As falas são uma multiplicidade equipolente[3] ou seja, respiram por si próprias como consciências autônomas, mas se comunicam intensivamente numa unidade de acontecimento.

Na segunda noite eles conversam mais; o “sonhador” (maneira como o personagem se descreve quando questionado por Nástienka), conta tudo sobre sua vida... sua vida de imaginação, seus devaneios, fantasias, suas verdadeiras janelas de fuga.

Neste ponto Dostoievski, pela fala do personagem, nos fornece algumas pistas sobre as principais obras que o influenciaram neste período: são citados personagens dos romances do escritor escocês Walter Scott (1771-1832); E.T.A Hoffmann(1776-1822); Aleskander Púchkin (1799-1832), e de compositores como Giacomo Meyerbeer (1791-1864) e Giacomo Antonio Rossini (1792-1868).

Após o discurso eufórico do jovem, chegou a vez de Nástienka falar. A moça comenta sobre sua família humilde, que estudou pouco, não viu muita coisa deste mundo e que vive numa casinha de três andares com a avó. Ambas viviam do dinheiro do aluguel dos inquilinos que ali se hospedavam.

Uma certa altura ela e a avó conhecem um homem, de meia idade, que se instala no mezanino que fica no quarto do andar de cima. O senhor, bem-educado, fino, com estilo elevado e elegante, rapidamente encanta a moça. Ele percebe que ela está presa a avó, e então tenta ampliar um pouco seu mundo, empresta-lhe alguns livros clássicos e a convida ambas ao teatro, assistir o Barbeiro de Sevilha (1816)[4]

Dostoievski desta vez, através da fala da moça, quando fala de sua história e como foi que se apaixonou, comenta sobre suas fontes favoritas

— Gostei mais de Ivanhoé[5] e Púchkin[6]Uma certa altura Nástienka conta que o inquilino precisava viajar a Moscou atrás de trabalho, e assim que retornasse, depois de um ano, se casaria com ela. Ele a avisaria de sua chegada, por meio de uma carta, entregue numa viela aos conhecidos da moça ou então se encontrariam na Ponte do rio Nievá.

A garota estava angustiada, pois sabia que o inquilino já havia chegado há dias, e não dava notícias.

Na segunda noite de encontro, ela diz: – Ele chegou, está aqui já há três dias e...

— E o que? Gritou o rapaz (o narrador), impaciente

 E até agora não apareceu! – Respondeu Nástienka

Assim cada vez mais...o coração do jovem anônimo se estreitava com o dela, como as notas de uma magnífica sinfonia...

Ao vê-la rompendo em lágrimas novamente ele diz:

— Diga, Nástienka, será que eu não poderia ir até ele? Em seguida completa: Não, certamente não! – Mas isto sim: escreva uma carta. E ditou:

— Escrevo-lhe. Desculpe-me por minha impaciência, mas durante um ano inteiro estive inebriada de esperança; acaso sou culpada de não poder agora suportar sequer um dia de dúvida? Agora que o senhor chegou, talvez já tenha mudado suas intenções. Sendo, assim, esta carta lhe dirá que eu não me queixo nem o culpo. Não o culpo por não ter domínio sobre o seu coração; este é o meu destino!

Eles combinaram; o rapaz entregaria a carta, no endereço que Nástienka havia combinado com o inquilino. O segundo encontro assim foi consumado!

Na terceira noite o rapaz estava com a cabeça cheia de dúvidas, sensações e pensamentos tão estranhos... como pude ser tão cego, quando tudo já fora tomado por outro e nada era meu; quando, enfim, até mesmo aquela sua ternura, seus cuidados, seu amor...sim, o seu amor por mim não era outra coisa senão a alegria pelo encontro iminente com o outro, o desejo de me contagiar com sua felicidade? – disse o consigo mesmo

E o personagem principal da história sabia de algum modo que ele viria, que eles já estavam juntos...

— Ah, Nástienka! Eu queria de algum modo lhe explicar essa estranha impressão...

— Chega, pare, chega! E a cada palavra dele, era devolvia com um riso, uma alegria...

As principais oportunidades de se aproximar do coração de Nástienka, era acompanhá-la naquele drama e consolá-la, dizer que o seu tão querido e aguardado iniquilino, poderia não ter recebido a carta ou não estar suficientemente pronto para responder, talvez não soubesse ainda...

Em certo momento na fala de Nástienka, percebemos o caráter polifônico do romance. - Sabe o que me veio à cabeça agora? Escute, por que todos nós não somos como irmãos? Por que parece que sempre que até o melhor dos homens esconde algo do outro e se cala diante dele?

— O senhor, por exemplo, não é como os outros! Na verdade, não sei lhe contar o que sinto; mas parece-me que o senhor, por exemplo...ainda agora...parece que o senhor sacrifica algo por mim.

A polifonia não é óbvia no começo, mas começa a ficar visível pela intensidade dos argumentos. Cada personagem de Dostoiévski possui uma voz que engolfa a dos demais, e embora cada uma tenha sua perspectiva, elas não estão isoladas, compondo uma espécie de comunicação compartilhada, porém inconclusa.

O drama do jovem que acabara de se mudar, e se sente perdido com a agitação na cidade está vivo em Nástienka, que, por sua vez, se desprende de um modo de vida recluso. De outro lado, o inquilino necessita consumar uma transição a fim de estar junto com a moça.

Assim termina a terceira noite; nenhuma carta, nem um sinal dele.

Em sua última noite de encontro, Nástienka encontrava-se de pé, como esteve na primeira vez, com os cotovelos apoiados no parapeito da marginal do rio.

— Bem, onde está a carta? O senhor trouxe a carta? – repetiu a moça.

— Não, não tenho a carta, respondeu o jovem. (...) – Quem sabe ele ainda não chegou?

Ela empalideceu, e dizia com a voz entrecortada:

 — E nem uma linha, nem uma linha! Que ele respondesse que não precisava de mim, que me rejeitasse, mas sequer uma linha em três dias inteiros!

Nástienka nesse momento entra em um falatório muito triste, seus dizeres muito pesarosos vão esmagando o rapaz, que até então soube conter muito bem seus reais sentimentos...

— O senhor não abandonaria aquela que veio até o senhor, não zombaria de seu débil e tolo coração com tamanha insolência, não é?

Ao ouvir essa frase, o rapaz não se aguenta e decidido, começa a se revelar diante dela; não obedecendo a uma ordem lógica, eis os trechos mais tensos de sua exaltação:

— Escute! O que vou dizer agora é totalmente absurdo, irrealizável e tolo! Sei que tudo isso nunca poderá acontecer, mas não posso me calar! (...) – Isto é irrealizável, mas eu a amo, Nástienka! (...) — Não pude suportar. Apenas quero dizer que a senhorita nunca saberia que eu a amo. Eu enterraria meu segredo!

A emoção da mocinha era tão forte que ela não conseguia falar direito sua fala saía toda entrecortada... — Quem sabe, talvez acabe hoje mesmo, pois eu o odeio porque riu de mim, enquanto o senhor chorou comigo; porque o senhor não me rejeitaria como ele, pois me ama, ao passo que ele não me amava; e porque eu mesma, enfim, amo o senhor (...) – Se o senhor sente que seu amor é tão grande a ponto de poder tirar de meu coração o que havia antes...

Mas uma vez chamamos a atenção para o que com grande mérito Bakhtin percebeu na literatura do escritor, pois os dois personagens são possuem uma imagem estável, concluída numa unidade do mundo percebida nos termos de uma interpretação habitual do enredo e da pragmática.

Quando tudo entre eles é dito, ambos começam a andar; Nástienka decide ir para casa, e caminhando em uma embriaguez de espírito, parecida com a de um nevoeiro, eles prosseguem tagarelando como se os dois não soubessem o que se passava entre eles.

Nástienka que já estava fora de si, ficou em um momento estarrecida, chegou num ponto de embriaguez ainda mais alto, sua mão tremia na mão do rapaz...

Repentinamente, ela diz: — É ele!

Então aparece, como que surgindo do nada, o jovem que voltara de viagem

Deus, que grito! Como ela tremeu! Como escapou das minhas mãos e voou ao encontro dele! — Pensou o rapaz.

Ela ainda voltou, sem dizer uma palavra, envolvendo-o em um beijo caloroso e intenso, e lançou-se novamente nos braços do outro jovem, que fora seu inquilino e o levou consigo... até que ambos desaparecem de seus olhos...

Na manhã seguinte, nosso jovem, ao acordar recebe uma carta, trazida por uma criada, que dizia:

— Nós nos encontramos, o senhor virá à nossa casa, não nos deixará, será para sempre meu amigo, meu irmão...E quando me vir, me dará a mão...Sim?

(...)

— Perdoe, lembre-se e ame a sua

 

                                                                                       Nástienka

 

O romance termina, porém fica a sensação que ele não acaba. Um final feliz ou infeliz não interessa a Dostoiévski, pois sua marca é a inconclusibilidade. Percebe-se que, a cada tentativa de definir um papel estável, evidencia-se que cada personagem se encontra entrançado numa relação muito tensa com os demais. A cada palavra os personagens produzem uma fissura na consciência do outro; o que carregavam como ideologias quedam despedaçadas por uma força misteriosa que os extrapola, à margem de qualquer de análise histórica.

 

Referências Bibliográficas:

 

BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: 5ª edição - Forense Universitária, 2013.

DOSTOIÉVSKI, M. Fiódor. Noites Brancas. Trad. Nivaldo dos Santos. São Paulo: 3ªedição - Editora 34, 2009.

DOSTOIÉVSKI, M. Fiódor. Diário de um escritor. Trad. E. Jacy Monteiro (Introdução de Otto MariaCarpeaux). Rio de Janeiro: Estrela de Ouro, 1957.

FRANK, Joseph. Dostoiévski: As Sementes da revolta (1821-1849). Trad. Pereira. Vera. São Paulo: Edusp, 2008

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. Ed. 34: São Paulo, 2003

 


[1]A mais famosa avenida de São Petersburgo, que serviu de cenário para a novela Avenida Niévski (1835), de N.V. Gógol (1809-1852).

[2]Local de descanso da nobreza, durante o versão

[3] São vozes e consciências imiscíveis, autônomas, que estão em um diálogo em absoluta igualdade.

[4]Célebre ópera de Giacomo Antonio Rossini (1792-188).

[5] Considerado o primeiro romance histórico do Romantismo, é uma obra do escritor Walter Scott, publicado em 1820, narra a luta entre saxões e normandos e as intrigas de João-sem-Terra para destronar Ricardo Coração de Leão. A obra surgiu num momento em que se procurava exaltar o nacionalismo, e obteve tamanho sucesso que seu autor foi agraciado com título nobiliárquico. Embora fosse protagonizado pelo cavaleiro Wilfred de Ivanhoé, são os personagens quase anônimos que encontram maior destaque do que este, a exemplo de Brian de Bois Guilbert, um templário, vilão que engendra várias maldades

[6] Alekandr Púchkin foi um romancista e poeta russo da era romântica é considerado por muitos como o maior poeta russo e fundador da moderna literatura russa. Púchkin foi pioneiro no uso do discurso vernacular em seus poemas e peças teatrais, criando um estilo de narrativa que misturava drama, romance e sátira associada com a literatura russa, influenciando fortemente desde então os escritores russos seguintes. Sua obra mais conhecida é Eugene Onegin