O Futuro da Língua Portuguesa

O Futuro da Língua Portuguesa

O Futuro da Língua Portuguesa

Doutor Mario Villas Boas

 

 

Há muitos anos tive a rara oportunidade de ter em mãos a reimpressão de alguns livros editados a respeito do Brasil quando ele ainda era uma grande novidade. Foram escritos nos séculos XVI e XVII e contavam coisas que são triviais para nós, brasileiros do século XXI mas eram grandes novidades para os europeus no tempo em que foram escritos. Esses livros faziam parte de um trabalho que a USP estava iniciando para resgatar detalhes do início da história do Brasil. Mas o efeito que teve sobre mim foi muito diverso.

Os autores do trabalho traduziram para o português moderno (da ocasião, pois já houve nova reforma gramatical depois disso) os livros que haviam originalmente sido escritos em línguas estrangeiras, como francês ou alemão. Mas os livros que foram originalmente escritos em português foram reeditados com a grafia original, ou seja, sem as atualizações ortográficas que aconteceram entre a primeira edição e sua reedição mais de 400 anos depois.

Esse é um exercício que todos nós, lusófonos que gostamos de nossa bela língua portuguesa deveríamos fazer: tentar ler textos antigos escritos em nosso idioma. Acredito que se o leitor dessas mal-traçadas linhas fizer isso pela primeira vez levará o mesmo susto que eu levei quando tive essa oportunidade ímpar. No século XVI, nossos ancestrais falavam um idioma que se parece muito pouco com o que falamos hoje. Mal dá para reconhecer aquilo como “português”.

Autoridades responsáveis pela integridade do idioma que falamos não parecem perceber o perigo que isso representa. Veja-se o inglês, por exemplo. William Shakespare, considerado como o autor símbolo da língua inglesa, o escritor que captou a mais bela e pura essência do idioma inglês falava, há quase 500 anos, um idioma essencialmente igual ao inglês falado hoje. Podemos ver algumas diferenças aqui e ali, mas seus escritos podem ser lidos hoje, por alguém que domine a língua inglesa sem que sua grafia precise ser atualizada. O mesmo não pode ser dito de seu contemporâneo Luís de Camões, o poeta maior da língua portuguesa. A língua que ele usou para escrever o que hoje consideramos as obras-símbolo da língua portuguesa não é mais falada. O espanhol, língua irmã da língua portuguesa também não sofreu alterações tão significativas desde as grandes navegações até os dias de hoje.

No século XX, houve 3 reformas ortográficas na língua portuguesa. No Brasil. Na ocasião, divergências políticas entre Brasil e Portugal fizeram com que o que valesse para português brasileiro não valesse para o português luso, e vice-versa. O século XXI inicia-se com mais uma reforma ortográfica na língua de Camões, cuja adoção está gerando mais confusão do que a pretendida unificação.

Ao longo de seus 51 anos de vida, este modesto articulista viu palavras de nossa amada língua portuguesa serem lançadas ao ostracismo, substituídas, sem a menor piedade, por palavras da língua inglesa. O caso mais conhecido é o do tecido de brim, substituído pelo anglicismo “jeans”, sem a menor necessidade. Mais recentemente, vemos o “dietético” ser substituído por “diet” sem a menor compaixão. O mangostão, fruta descoberta por nossos ancestrais portugueses, é hoje comercializado no Brasil com o nome de “mangostin”, dados pelos inglêses, incapazes que eram de pronunciar o ditongo “ão” tão característico de nossa língua natal. Para não mencionar o “kiwi” nome dado pelos neo-zelandezes a uma fruta batizada há séculos pelos portugueses de “groselha da china”.

Erros de português acontecem em documentos oficiais. O pronome “lhe” vem substituindo erradamente os pronomes oblícuos “o” e “a” em frases como “Eu lhe amo” de uso tão freqüente que pararam de soar erradas aos ouvidos da maioria. O uso correto do imperativo na 2ª pessoa no Brasil é uma raridade.

 

Todos esses fenômenos lingüísticos (o trema deve ou não ser colocado?) vêm atormentando os lusófonos há anos. Mas agora um ameaça de modo ainda mais direto a integridade de nossa bela língua: autores de livros didáticos andam defendendo o uso de erros de concordância como uma coisa aceitável. Uma coisa é admitir que é possível estabelecer uma comunicação com esses erros de concordância. Outra é admitir que frases com tais erros devem ser aceitas. Como uma vez vi um palestrante citar uma passagem da Bíblia como “amai a seu próximo como a ti mesmo”. Dois erros de concordância verbal numa frase com um único verbo. Deve ser um recorde. Pela nova ortografia, pérolas como essa passarão a ser aceitáveis.

O valor de uma língua é função do número de pessoas que a fala, do tamanho da área que o povo que a fala habita e do tempo que esta língua foi usado. No último quesito nossa língua portuguesa vem perdendo pontos rapidamente. Não admira que povos que falam outros idiomas não se interessem muito em aprender o nosso como língua estrangeira.

Ainda podemos salvar nosso idioma. Mas para isso, é preciso que tomemos cuidado com ele. Que nós, que o falamos e o amamos cuidemos para que ele não se degenere. Se não tomarmos esse tipo de cuidado, não vejo muito futuro para nosso belo idioma.