O passeio pela câmera interna e pelo espaço externo, no livro Intramuros, de Astrid Cabral

O passeio pela câmera interna e pelo espaço externo, no livro Intramuros, de Astrid Cabral

A grande dama da literatura brasileira em pleno vigor artístico

 

Fonte: Divulga Escritor

Por Alexandra Vieira de Almeida

           

            O livro de poemas Intramuros, de Astrid Cabral foi publicado originalmente em Curitiba, estando em segunda edição pela Valer de Manaus. Conquistou o importante prêmio de literatura Helena Kolody. É uma obra que atinge as reflexões fundamentais sobre subjetividade e objetividade, o dentro e o fora, a natureza e o artificial, percorrendo espaços que preenchem as lacunas da presença, sendo esta imaginativa ou realista. Como a autora mesma explica num texto teórico que percorre a trajetória de sua obra artística: “A coletânea Intramuros/Extramuros revela, desde o título, a proposta de um espaço poético fechado e de outro aberto”. Quando a poeta cita as laranjas no poema que inaugura o livro, mostra seu desencantamento com relação à natureza morta na miniatura de sua casa, no prato matinal, como se lá fora, elas fossem mais plenas e leves e não condizentes com o peso da rotina. O dentro tem suas mágoas que entorpecem a vida externa. No mesmo poema, o azul do pássaro faz lembrar ao eu-lírico que esta imagem do bule da louça é uma representação débil da realidade vibrante que ela tanto almeja. Logo no primeiro poema do livro, encontra-se o diálogo entre o intra e o extramuro. Para o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, muro pode indicar “separação”. Aqui, há a agressividade da natureza adentrando a vida doméstica, como se aquela em seu estado puro não se revelasse tão ameaçadora sem o contato do humano, seja a partir do olhar que este lança sobre o fora, seja pelo artefato que ele produz através do natural, sua base.

            Na poesia, a linguagem, para Astrid, ameaça o silêncio ameno do esquecimento. As palavras jorram em direção dos entrelugares, em que corpo e pausa, toque objetivo e seu olhar abstrato se intercalam: “A xícara de louça/aparentemente muda/me fala de horários/chás cafés chocolates...” A “cerimônia do dia”, como a poeta mesma anuncia é uma representação falha da natureza. Temos uma ritualística dos objetos, fugindo à liberdade dos pássaros fora das gaiolas e das xícaras; a natureza é a tão sonhada utopia do eu-lírico, que no interior da casa adquire a coagulação do sangue fresco das tintas do artista preso à sua interioridade objetiva. O muro aqui é símbolo de uma ultrapassagem da separação, de uma fronteira entre o fora e o dentro. A verticalidade deste espaço se desmorona, dando lugar à habitação poética. O poetizar é a forma de Astrid subverter o lugar que cabe apenas à concretude das coisas. O olhar traspassa tudo. A experiência subjetiva da poeta adquire vida e aniquila o que está morto a sua volta, o que é rotina, horário, passagem. No belíssimo e afinado prefácio de Fausto Cunha a este livro de Astrid: “O mundo real permeia a obra de Astrid Cabral desde os contos de Alameda (1963).” Certamente que a realidade é a matéria-prima do poeta, mas o olhar entrecruzado desta escritora, pespontando as linhas invisíveis de duas margens: o universo doméstico e exterior, transforma o hábito em drama, em movimento, trama, intercalando memórias diversas num mesmo ser que se atualiza em cada vislumbrar do momento.

             Em “Piscina”, Astrid ri e ironiza a representação da natureza a partir deste objeto que se encontra nas casas e serve de prazer para as crianças. Utiliza uma metáfora riquíssima para falar com seu tom sarcástico sobre o confinamento da natureza no espaço doméstico: “mar domesticado”. O saudosismo do eu lírico é perfurar esta muralha que separa o concreto das habitações para percorrer os espaços imaginários da natura tão esnobada e rejeitada pelo homem moderno que prefere os artificialismos estéticos das construções arquitetônicas. A forma como Astrid lê o universo doméstico, seus objetos, o adentrar da natureza que ultrapassa a sua porta é o acordar para a realidade. Nisto reside a realidade de que fala Fausto Cunha. Refletir sobre o fora no dentro e a partir do dentro do eu lírico é que requer uma originalidade excepcional  desta poeta singular. Para Schopenhauer, em A arte de escrever: “O estilo é a fisionomia do espírito.” E estilo, Astrid Cabral tem de sobra. A estilização do fora é colocar o olho de dentro como uma máquina fotográfica que capta o externo com cores diferentes e inaugurais, quebrando a rotina de que tanto a poeta reclama. Em “Ovo estrelado”: “Do céu do prato/um sol me olha/com olho de ouro.” O macroscópico, o grandioso e o pequeno, familiar se intercalam saltando faíscas líricas de criatividade sobre o real. Este tecido artístico através das palavras é que é capaz de driblar o cansaço do mesmo, da univocidade.

                Gilles Deleuze, em Diferença e repetição, disse: “O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria diferença.” Aqui o dentro e o fora se dedilham, o ser e a linguagem se tocam, como se o discurso engendrasse uma diferença necessária para o mito do ser essencial e sempre igual a si mesmo, pois é a partir destes dois muros (intra e extra) aqui em Astrid que a palavra se extrapola dos muros da essência subjetiva. O objetivo lança um olhar ameaçador ao interior do eu lírico que expele toda sua dor e prazer diante da realidade. O olhar adquire estado de coisa, o objeto se aprofunda no dentro e o jogo torna possível a passagem de um para outro plano.

            Fugindo ao espaço doméstico, a parte final “Extramuros” relata sobre lugares vivos, as naturezas vibrantes de fora e espaços pelos quais a poeta viajou. Tem-se a “Catedral de bambu”, onde o eu lírico se regozija com a beleza mística da natureza, mesclando objetos da igreja com as folhas naturais. Mais uma vez a “separação” dos muros é só um artifício para esta escritora fantástica fazer sua brincadeira elegante que quebra com as fronteiras do fácil. Nos postais sul-americanos e de Paris, tem-se mais uma vez a versatilidade de Astrid Cabral em cortar as distâncias entre o dentro e o fora. Nesta série de poemas, o corpo da natureza se conecta com o artificialismo das construções e o olhar do leitor dança e paira por sobre os muros das espécies, num jogo presentificado e raro. Os postais não poderiam ser a estilização do olhar do eu lírico? Não sua forma física em fotografia, mas o ferir do olho da câmera interior no passeio imagético pelas cidades pelas quais a poeta viajou? Portanto, pode-se dizer que a objetividade se cumpre neste seu livro, mas não deixa de ter o peso da câmera interna do eu-lírico que tece um tapete fotográfico imaginário e subjetivo, num passeio pela lente do leitor que completa estes verdadeiros postais com linhas de várias cores. Este livro tem o que dizer sobre espaços ainda não ditos pelo olho comum.

 

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Biografia da Astrid

https://malabarismospoeticos.blogspot.com.br/2015/09/a-grande-dama-da-literatura-nacional-e.html